quinta-feira, 8 de fevereiro de 2024

Voltar às raízes em tempo de presépios

Ontem voltei a Sobreposta, a terra dos meus avós paternos, onde vivi até aos oito anos. Nessa altura, os habitantes dos lugares de cada freguesia eram uma espécie de família alargada. Ainda são, a julgar pelos presépios que se podem observar em cada um deles, e que foram fruto de construção coletiva. Diferentes na forma, no tamanho, na técnica ou materiais, são, contudo, iguais no propósito que está por trás da construção de cada um: o fortalecimento da união, de que o presépio é, afinal, símbolo máximo.

E, surpresa das surpresas, num daqueles lugares ardia uma fogueira (desde manhã, disseram), que iluminava o presépio e, perto dele, como se fossem figuras daquela representação icónica, estavam os seus fazedores, em volta de uma mesa, para a qual fomos convidados. E assim, simplesmente, repartiram connosco o pão o vinho e o bolo-rei e pusemos em dia velhas lembranças, porque há sempre alguém que recordamos e há sempre alguém que lembra quem somos e de onde viemos.

Senhora Presidente da Freguesia de Sobreposta, a sua ideia colhe frutos, oxalá daqui a muitos anos esta seja mais uma tradição enraizada e se continue a repartir o pão, o vinho, os braços e os abraços.

Os lugares de Sobreposta estão mais bonitos. Parabéns!


quinta-feira, 31 de agosto de 2023

OS FLAMINGOS TAMBÉM CHORAM, Miguel Jesus e A LEI DO AMOR, Laura Esquível

Acabei de ler “Os Flamingos Também Choram”, de Miguel Jesus, “um romance para ler e ouvir”. Com efeito, ao longo das cerca de trezentas páginas, podem ser ouvidas canções da autoria do mesmo, porque surgem na história com um código QR, permitindo-nos ouvi-las enquanto lemos. 

Esse facto fez-me recordar um livro que li em 2001 (sei isso porque anoto em todos os meus livros a data da aquisição e primeira leitura). Trata-se de “A Lei do Amor”, de Laura Esquível. Nesse caso, mais do que a história — que já não recordo muito bem mas sei que na altura me agradou bastante —, ficou comigo a música. O livro vinha acompanhado de um CD que ouvia enquanto lia e ouvi-o muitas vezes depois disso. Mais tarde, deixei de o fazer, as plataformas digitais impuseram-se também na forma de ouvirmos música. No caso presente, “Os Flamingos Também Choram”, basta orientar o telemóvel para o código QR enquanto lemos. Na verdade, não o fiz muito, as letras distraíam-me, contudo gostei de ouvir as doze canções nos intervalos da leitura. Quanto à narrativa, achei-a muito agradável, com um bom ritmo e muito interessante no modo de apresentar o desenrolar dos acontecimentos.



sábado, 27 de maio de 2023

AS PRIMAS, Aurora Venturini




    Este é um livro diferente e desconcertante, quer no enredo, quer na linguagem, quer no estilo. 
    A narradora apresenta, na primeira pessoa, a sua família como se de um desfile circense de aberrações se tratasse. É nesse ambiente disfuncional, violento e desgraçado que ela cresce e se faz mulher, assumindo-se ela própria como “deficiente”, ou “anormal”, mais uma para a galeria das aberrações que constitui a sua família. No entanto, a par da sua disfuncionalidade, espreita algo de genial que faz dela um ser diferente e admirado.
    O livro é uma verdadeira pedra no charco cuja água lodosa nos salpica e deixa marca.
    A ler.
                                                                                                            Soni Esteves, maio de 2023

segunda-feira, 8 de maio de 2023

ADEUS, PRETINHA.

     Adeus, Pretinha. Não sei quanto tempo viveste, sei que apareceste neste bairro há cerca de dezoito anos, pelo menos, e que o Corredor te adotou. Um cão que adota outro cão era coisa nunca vista, que apetecia seguir como se fosse uma novela de amor, e eu segui e contei em livro para que outros soubessem como é bonito o coração de um cão. 

    Depois, o Corredor partiu, e tu, fiel à sua memória e à amizade que vos prendeu tantos anos, continuaste a dividir-te, a dividir as manhãs e as tardes entre a "rua do Parque" e a "rua de Trás", entre a tua casa e a dele, entre as vossas casas, as casas que vos acolheram e vos ensinaram o sentido da palavra "Família". 

   Gostava de te ver a fazer o caminho, no teu jeito saltariqueiro de andar, sem te aperceberes, talvez, que eras a última daquela grande família "Os cães da minha rua", sem fazeres caso do teu papel de  heroína de novela. Bastava-te a importância que tinhas no coração daqueles que se cruzavam contigo e te dispensavam  um gesto ou uma palavra de carinho. Por vezes, quando te via sozinha, a cumprir o teu percurso diário, aquele que dantes costumavas fazer com o teu amigo ou ao encontro dele, eu  temia que pudesses ser atropelada, é que o teu ouvido já funcionava mal e o Corredor já não te podia proteger. 

    Hoje chegou ao fim o teu tempo, os teus órgãos cansados, imploraram por repouso. Gosto de imaginar que o Corredor te veio buscar e que agora estás com ele a fazer a grande festa do reencontro. Consigo ver-vos a fazer corridas no céu dos cães e a sentirem pena dos humanos, aqui na Terra, de um lado para outro, sempre tão atarefados nas suas vidas, sem tempo para aproveitarem o sol, encostados ao portão verde, ou à sombra das árvores do Parque como vós costumáveis fazer.

    Enfim, dou por mim a pensar que tenho a certeza de que foste feliz no nosso bairro e, por entre um sorriso triste, sinto um aperto maior no meu peito, por  não ter parado a minha lufa-lufa humana, de todas a vezes que te vi, só para te dedicar umas palavras e um afago.

    Adeus Pretinha.

                                                                                                                                                Soni Esteves, 8 de maio, 2023 


 

segunda-feira, 3 de abril de 2023

UM RASTO DE PERFUME, Ana Paula Mateus



  Gostei tanto de ler este livro! Julgo que apenas uma alma feminina poderia escrever assim sobre mulheres, compreender as suas múltiplas facetas, compor o amor e a amizade no feminino, com tanta verdade. 

   É um livro pouco extenso, mas conta uma grande história onde cabem cinco mulheres muito diferentes, cada uma delas carregando um passado que lhes moldou o presente sem, contudo, o condenar a qualquer sorte de resignação ou desistência. 

   A linguagem é límpida, despretensiosa, muito perto do coração, mesmo quando mordaz ou crua, e ajuda-nos e vestir as personagens que, às tantas, apetece ter como amigas.

   O livro impeliu-me a uma leitura compulsiva e a lamentar o fim que via aproximar-se no encolher das páginas por desfolhar. O desfecho não desiludiu. Apesar de quase inevitável, consegue ser surpreendente.

   Parabéns, Ana Paula Mateus.


quarta-feira, 18 de janeiro de 2023

UM LUGAR AO SOL SEGUIDO DE UMA MULHER e O ACONTECIMENTO, Annie Ernaux


      Se os prémios literários servem para alguma coisa, uma delas é, sem dúvida, fazer-nos descobrir outros títulos e outros autores. Pode ser ignorância minha, é com certeza, mas não conhecia Annie Ernaux, até ela ter ganhado o Prémio Nobel 2022. E como se pudesse penitenciar-me por tal desconhecimento, a minha última leitura de 2022 e a primeira de 2023 foram para ela.
     Comecei por Um lugar ao sol seguido de Uma Mulher, um livro que na verdade é composto por dois textos autónomos: Um lugar ao sol, publicado em 1984 e Uma mulher, publicado em 1988. Os dois textos são autobiográficos e constituem viagens pela memória da autora em torno das suas vivências, sonhos e fracassos, do seu legado familiar, das suas grandes perdas. Pode acrescentar-se que são também o retrato de uma época e da sociedade onde Ernaux cresceu e se movimentou. O primeiro é uma tentativa de reconstrução da memória do pai, o segundo é sobre a mãe.
       Quanto ao livro O acontecimento relata a sua experiência traumática quando, aos 23 anos, decide recorrer ao aborto ilegal, certa de que uma gravidez não planeada vai deitar por terra uma carreira que antevê brilhante. Em 1963, mesmo em Paris, percebemos pelo seu tom, pela clareza com que expõe o seu sofrimento, que o aborto clandestino é um experiência perigosa, socialmente condenada e profundamente traumática. A memória magoada desse acontecimento acompanhou-a ao longo dos anos, sendo que a escrita deste livro (1999) terá sido, de algum modo, uma libertação.
        A escrita é simples, sem artifícios, mas poderosa. A ler.

                                                                                                                    Soni Esteves, janeiro de 2023


terça-feira, 10 de janeiro de 2023

Uma história de Natal

 Texto publicado in Bird Magazine, dezembro de 2022


Era uma vez uma velha vaca que vivia muito infeliz. Pertencia a um homem triste que procurava consolo no sofrimento que conseguia infligir, como se cada bordoada que desse na pobre vaca o fizesse sentir menos triste. 
Um dia, a vaca ouviu-o dizer à mulher que no dia seguinte ia matá-la, pois já estava velha e nem à força de pancada conseguia puxar o arado. Então a vaca resolveu fugir. Esperou que o casal fosse dormir e meteu patas ao caminho. 
A noite estava escura, mal dava para ver o carreiro, em contrapartida, todos os ruídos noturnos pareciam ampliados. Por entre eles, pareceu-lhe ouvir um lamento. A vaca, ainda que receosa, aproximou-se de uma moita, por lhe parecer que era dali que partia aquele som amargurado. Viu então um pequeno burro que a olhava de olhos assarapantados e orelhas muito espetadas. Ficou a saber que o burro tinha visto morrer o seu dono, um velhinho simpático que sempre o tratara bem. Os filhos do velhinho vieram enterrar o homem e levaram com eles a mãe, mas esqueceram-se da sua existência e para ali o tinham deixado abandonado à sua sorte. Nos primeiros dias ainda tivera o que comer, mas agora não lhe restava senão partir à procura de outro destino.
Está-se mesmo a ver no que isto deu, já vimos coisas parecidas acontecerem em outras histórias tradicionais, porque nestas, os animais dão-nos sempre lições de companheirismo e solidariedade. A vaca e o burro seguiram juntos. Ainda havia muita noite pela frente e eles começavam a acusar o cansaço. Parecia-lhes, contudo, que a escuridão já não era a mesma, fosse pela companhia, ou por uma estranha e tímida luz que vinha de cima. Não costumam os animais olhar para o céu, mas olharam daquela vez e viram uma estrela de cauda a brilhar lá bem no alto. E foi nesse desviar do olhar para cima que se deram conta, mais à frente, da existência daquilo que lhes pareceu um estábulo. Espreitaram, estava vazio, entraram, acomodaram-se e logo adormeceram.
O que a vaca e o burro não viram é que ao lado do estábulo havia um casebre onde vivia um pobre homem, solitário. Pareceu ao homem, por entre o sono, ter ouvido o ranger da porta do estábulo. Pegou na candeia de azeite e foi ver o que se passava. A vaca e o burro não viram o espanto do homem quando os descobriu, nem tão pouco deram conta de que este, silenciosamente, encheu de palha a manjedoura para que pudessem alimentar-se quando acordassem daquele sono que, por certo, era a sua maior necessidade, naquele momento.
O velho homem, contente por aquele inesperado encontro, deitou-se e logo voltou a entrar no sono. Pouco tempo depois, ouviu o cantar de um galo, e logo outro e outro (não é preciso dizer que o galo era o seu despertador, tal como o sol era o seu relógio). Achou estranho, porque lhe pareceu ter ainda muito sono para sossegar. Pelas frinchas das portadas percebia a chegada do sol, assustadiço, a enfrentar a noite ainda relutante na partida. Mas o que viu, quando abriu a porta, deixou-o maravilhado. Não era o sol, não, a luz que ali brilhava era da estrela que há dias se via brilhar no alto e que parecia ter descido e intensificado o brilho. Brilhava mesmo por cima do seu estábulo, inundando-o de uma luz quase transcendental.
O resto... já se sabe, o que não se sabe é que nesta história os primeiros a verem o Menino não foram os pastores. Esses, viu-os o homem, ao longe, a fazerem caminho naquela direção.