Quando os pensamentos
não cabem dentro de nós…
Quando os pensamentos não cabem dentro de nós…
Depois que o
Remela se perdeu, para se reencontrar, na luz que o levou de nós, eu conheci a
saudade. Veio devagar, disfarçada de tristeza, e só lhe percebia a diferença
pela persistência das imagens que agora me ocupavam os olhos que veem para dentro
de mim.
Quedava-me,
logo pela manhã, a olhar o varandim vazio na casa da frente, onde o Remela
havia passado a maior parte dos seus dias, como se esperasse que, a qualquer
momento, ele pudesse aparecer, por detrás da tosse que ultimamente o precedia. Mas
o lento passar dos dias foi mostrando aquilo que o meu instinto já me havia confiado,
que há partidas sem regresso e que jamais o voltaria a ver assim como quem vê
aquilo que está mesmo à nossa frente.
Então cerrava
os olhos e via-o, ouvia a rouquidão do seu latido baixo, sentia, quase, o calor
que emanava o seu corpo pesado e só o rumor do dia que acabara de acontecer e
me obrigava a abrir os olhos, me mostrava que fora de mim havia outra vida
diferente de viver.
Só então entendi
a insistência do Remela em falar dos dias frios que se seguiram à partida do
Kid. Na altura desconhecia que existe uma temperatura interior, alheia ao sol
ou à chuva, à calmaria ou às tempestades. Também eu senti esse arrepio nascer-me
nas entranhas e medrar, até gelar o meu próprio pensamento. Foram assim os
primeiros dias em que a sua ausência mais doeu.
A vida chamou por mim…
Pouco
a pouco, a vida regressou ao bairro, regressou a mim. Ainda sentia a estranheza
de não ter o Remela por companheiro, mas a sua ausência já não doía, era apenas
estranha e triste.
O
Castanho era o meu mais recente amigo e era ele e o Branquinho que coloriam os meus
dias, nessa fase. O Branquinho, por vezes, parecia um pouco intimidado com os
malabarismos deste nosso novo companheiro de bairro. Também eu me quedava de
espanto quando ele saltava os muros como os gatos, tal e qual como o Remela contava
que havia feito quando era muito novo e eu ainda não tinha existência. Mas,
apesar dessas histórias fabulosas do Remela, até à chegada do Castanho, eu não
tinha a certeza de que fosse possível os cães saltarem os muros dos jardins
como se fossem gatos. Talvez ele tivesse aprendido a fazê-lo com a Xana, a gata
de sua casa, que usava uma coleira vermelha no pescoço, e com quem ele agia
como age comigo ou com o Branquinho.
Claro
que essas formas de atuar, tão novas, provocavam em mim um misto de espanto e
admiração, deixando-me sem saber muito bem se era o Castanho que pertencia ao
mundo dos gatos, ou se era a Xana que pertencia ao mundo dos cachorros.
As múltiplas formas de partir
A
vida ensinou-me que partir não é apenas ir embora, existem muitas formas de o
fazer, nem todas são boas, ou más, e a diferença percebe-se nos gestos e nas
palavras que antecipam a partida, mas sobretudo nos olhos de quem parte e de
quem fica.
Quando
os meus humanos, pela manhã, se despedem de mim, eu sei que hão de regressar ao
fim do dia; sei distinguir quando alguém parte com promessa de um regresso mais
tardio, como quando os meus saem de casa, com bagagem e gestos diferentes dos
de todos os dias, e eu fico em casa da tia Aida; e aprendi, também, que há as partidas
sem retorno, como a da Luca e a do Remela.
Um
dia, o Castanho foi embora. Os de sua casa meteram muitas coisas num camião,
ele e a Xana foram enfiados dentro do automóvel, juntamente com a família e desapareceram
para sempre, mas eu não soube ver isso nos seus olhares.
Só
percebi que era para sempre quando os dias se sucederam e a casa continuava
vazia. Ainda continua vazia…
Olhando
a recente inatividade naquelas janelas, lembrei uma história que o Remela me
contara, de quando, naquela mesma casa viveram outros humanos. Eram três
crianças, a mãe e o pai. Tinha sido a criança mais pequena a aplicar-lhe, pela
primeira vez, o nome de Pantufa. Esses humanos também tinham uma gata, era a
Sininho, a única gata tolerada pela Luca. Segundo o Remela, não era apenas
tolerada, havia jogos e brincadeiras entre os dois que lhe custava admitir. Ora
esses humanos, também, um dia, meteram os seus pertences num camião e partiram,
só não levando a Sininho, porque, por essa altura, já não existia, não me soube
o Remela explicar porquê. Pensava ele
que, em face do observado, da gravidade exibida pelo semblante daqueles
humanos, aquela seria uma partida definitiva, irremediável e que, como tal,
jamais os voltaria a ver… mas o tempo viria a provar-lhe que estava enganado. Acontece que, tempos depois, eles regressaram
ao bairro, não para a casa que outrora habitaram, essa tinha já novos humanos,
mas ali estavam os amigos que ficaram e, de algum modo, o seu espaço estava
também em casa deles. Conheci-os, pouco depois, e percebo neles e nos meus,
quando os recebem, a alegria do regresso, apesar da nostalgia que a acompanha.
Entendi,
então, que há, a acrescer a todas as outras, uma outra forma de partir, seria definitiva,
mas não irremediavelmente… e não sabendo muito bem porquê, algo me dizia que existia,
ainda, a chance de eu e o Castanho nos voltarmos a encontrar…
Conheço esse gelo interior, esse abandono... infelizmente. Mas não sei dizê-lo como tu. Sempre que releio, emociono-me. Obrigada.
ResponderEliminarO mais importante é sentir, não é dizê-lo. Colocar o sentimento em palavras é apenas uma das formas de trazer a emoção à superfície, quase como quem chora. Obrigada por partilhares comigo o teu sentir.
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