domingo, 28 de maio de 2017

Doce espera

O senhor António Estopa já era velhinho quando o conheci. Conhecia-o desde que me lembro de conhecer gente para além da minha família mais chegada. Era o Serantone, e morava numa casa que, na altura, também já era velha. Hoje, o Serantone é apenas uma memória, e da casa restam as paredes arruinadas, uma porta carcomida e sempre aberta e algumas telhas que o tempo ainda não levou.
Perto da sua casa tinha um eido que ele e a mulher, Rosa, a Serrosa, cultivavam com esmero, e de onde colhiam as couves e o feijão para a sopa, as uvas que lhes davam um vinho que era o seu orgulho e o milho que lhes assegurava o pão de cada dia.
De vez em quando, os netos, tinham muitos, vinham visitá-los. Depois foram para França e só raramente por ali apareciam, deixando-os entregues à sua solidão.
A mulher era pouco dada a conversas. Muito reservada, sempre metida no seu canto, de casa para o eido, do eido para casa, só saía para ir à fonte por um cântaro de água, ou para ir à poça lavar uma roupinha.  
Talvez a falta da água fosse motivo de angústia para o casal, pois era frequente ver-se o Serantone, de enxada e alvião em punho a esburacar os socalcos do seu eido em busca de uma mina que lhe soltasse as águas que ele aí imaginava aprisionadas.
Quando o tempo lhe sobrava das lides e da sua eterna busca da mina perdida, vinha sentar-se ao pé de mim, num pequeno penedo que existia do lado exterior do portão que dava acesso à minha casa. Era o meu local preferido para brincar e era ali que ele me contava as mais incríveis histórias. E como eu gostava daquelas histórias, mesmo que algumas me tirassem o sono, por nelas entrarem bruxas, diabos e almas do outro mundo.
Depois eu cresci, o Serantone ficou mais velho, coisa que eu não sabia possível e, como deixei de brincar ao portão, ele deixou de se sentar ao pé de mim a contar-me histórias.
Então era eu a ir sentar-me ao pé dele, quando o via à soleira da sua casa, em busca de uma réstia de sol, ou de uma sombra, conforme a altura do dia ou a estação do ano.
Um dia disse-me:
-Aqui estou eu… à espera do tempo!
E antes de me dar espaço para pensar que tempo seria esse que ele esperava, ou se era afinal o fim dos tempos, no seu jeito lento e sábio, continuou:
- Primeiro fica tudo muito verde, muito fresco, depois vêm as flores, as cores, os cheiros, e eu sinto que não foi em vão que esperei para respirar aquela vida toda… depois chegam os frutos, pequeninos primeiro, a engordar depois com o calor, até se sentir o cheiro doce e embriagante do fruto maduro…. Espero depois por outubro, quando o calor dói nas searas e chegam as novas cores. Então, é ver as árvores a soltarem os últimos frutos que eu já não consigo apanhar, por estarem tão altos, e acompanhar com o olhar as folhas tingidas de cores outonais que se deixam cair de cansaço! É a natureza a despedir-se para um merecido descanso… e eu espero até que acorde, de novo…
Não seriam bem estas as palavras, foram mais bonitas com certeza, porque as suas tinham uma poesia própria e natural! Quanto à voz, guardo a memória da sua musicalidade, de tal modo que quase consigo ouvi-la quando olho um fruto na árvore, e fico ali, parada, como que à espera que ele cresça, de repente, para mim.
Soni Esteves, maio de 2017


11 comentários:

  1. Tão doce, este conto!
    Adorei, Soni!
    Há esperas assim: doces, esperançosas e animadoras!
    Obrigada pela doce partilha!

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    1. Desconheço porquê, mas a minha identificação não apareceu. Sou a Elisabete Gonçalves.😉

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    2. Obrigada Elisabete, na verdade foi a doçura da personagem real que me inspirou a escrever assim. É a prova de que há pessoas inspiradoras. 😘

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  2. Lindo o teu conto que, bem pode ser o meu, numa outra história .Não sendo igual remeteu-me mesmo assim para tempos de ternura. És fabulosa na forma como nos tocas o coração. Bj Guida

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    1. Isso é porque tenho a sorte de ter comigo pessoas inspiradoras. Tu sabes bem que és uma delas. Beijo

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  3. Bzzz. Consegui.

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  4. Tocante,Soni. As águas não apareceram na mina,mas encheram os meus olhos.

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  5. Este comentário foi removido por um gestor do blogue.

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  6. O Serantone é uma estrela cadente que risca os sonhos das noites e as aquece!

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  7. É uma bonita forma de o definir, obrigada.

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