quarta-feira, 18 de agosto de 2021

BOAS VIZINHANÇAS

Crónica publicada in Bird Magazine, 19 de julho, 2021 

 

      Há uma árvore na janela do meu quarto! Há anos que vigio o seu crescer sereno, por detrás de uma casa que lhe empresta vizinhança. Começou por ser um ramo curioso a espreitar sobre o telhado que, por certo, lhe roubava horizonte, alheio às suas necessidades de árvore nova e ávida de mundo. 
Embora só conhecesse dele a copa que, orgulhosamente, erguia bem acima do telhado da casa que o ocultava, reconhecia nele a majestade de uma árvore. Era um pinheiro! Não era árvore frondosa, e os seus ramos não se estendiam num abraço celeste, antes se erguiam em serena prece, tingindo com traços finos o céu, como se desenhasse um caminho até às nuvens ou às estrelas. Eu achava graça àquele tronco esguio que parecia confundir tamanho com maturidade e não sabia ainda que esses são apenas dois versos que nem sempre cabem no mesmo poema. Habituei-me, pois, a olhar aquele pinheiro, talvez com a complacência com que os velhos olham as crianças, e a deixar que o meu olhar pousasse nele, a cada abrir da minha janela.
Tempos depois, percebi que aquele ramo solitário, um tufo verde e altaneiro, ganhara novos companheiros. Como ele, outros pinheiros ganhavam tamanho e tingiam de verde o azul acima das casas do outro lado da minha rua, numa promessa de outra robustez. Olhei, uma outra vez, a mais antiga árvore. Era a mais alta, pinheiro singelo, tímido e humilde, e de uma delicadeza tão tocante que experimentei por ele algo muito próximo daquilo que se sente perante a fragilidade exposta de um amigo, que se dobra quando o vento se abate sobre ele, mas que, apesar disso, não desiste de crescer. 
Um dia, chegou a minha casa uma gata que teimava em ver o que eu via... e se calhar via mais, até, porque quando ela olhava pela janela e deitava o olhar para longe, parecia que se perdia em devaneios e, quem sabe, sonhasse um dia trepar ao cimo do pinheiro, como gajeiro que sobe à gávea e perscruta o aproximar de tempestades. E, juntando-me a ela naquele olhar, gostava de fingir que o pinheiro nos dava notícias do mar, nos falava do vento que enrola a areia e trazia até nós o cheiro da maresia nas ondas do seu bailar.
Mas, a minha gata escolheu ir embora e agora acontece-me muitas vezes ficar triste e pensar que, um dia, um som de morte atroará por este vale e derrotará o verde que tinge este meu céu. E então restarão os automóveis que já não ocuparão os olhos da minha gata. Restarão os telhados. Haverá, com certeza, as rolas que gostam de passear por sobre as telhas e restarão as andorinhas nos beirais, a cada primavera, para alimentar a minha esperança. E, pensando nessas aves de bom agoiro que há algum tempo vejo por estes lados, penso que a minha gata há de voltar e que o pinheiro viverá os anos que lhe couber viver, quem sabe continuará a crescer muito para além de mim (dizem que pode viver até 300 anos), tal como deve ser e a natureza quer. 



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