De
repente, sair de casa deixou de ser tão divertido. Nos dias que se seguiram à
partida do Castanho deitava-me na entrada do jardim e sentia o quanto a rua
estava deserta. Primeiro sem o Remela, depois sem o Castanho…
O
Branquinho há dias que não aparecia, acho que, definitivamente, não gostava das
minhas brincadeiras com o Castanho e desistira de tentar sentir-se incluído. Pensei
procurá-lo, seguir em direção ao parque, dado que a casa que lhe servia de
morada ficava por detrás dele, mas lembrei a sua nova companheira, uma cadelinha
linda de pelo malhado, e desisti. Talvez ela fosse, de algum modo, responsável
pelo seu recente distanciamento. Não me importei, também não me apetecia
alinhar em grandes confraternizações… ainda não estava pronto, alguma coisa em
mim precisava de tempo para se alindar.
Dava-me conta de que estava
diferente, mas não conseguia perceber o quanto, não me reconhecia, não sabia o
que esperar de mim. Sem perceber bem porquê, dei por mim a imitar o Castanho,
fazendo aquilo que nunca entendera nele… correr atrás de tudo o que tivesse
rodas e fosse desconhecido no bairro. E foi assim que a saudade cedeu vez
à estupidez.
Cada
dia estava mais atrevido, sentia-me mais poderoso, não procurava vencer os
automóveis, como o Corredor, queria impedi-los de passarem na minha rua. Por
isso não limitava a minha corrida ao passeio, como ele fazia, rondava-lhes os
pneus, tentava antecipar-me, cruzar a sua frente, fazer-lhes frente!
Um
dia, a corrida acabou mal… uma distância mal calculada, uma guinada nervosa da
condutora, que não pertencia ao meu bairro, marcou, definitivamente, a minha
vida.
Valeu-me a tia Aida que estava perto e ouviu o chiar do automóvel quando tentou
travar marcha, ouviu o meu pranto de surpresa e dor, e ouviu o seu próprio
grito, nascido do sofrimento de me ver assim, consumido em gemidos lancinantes.
Levou-me
ao colo para o veterinário, enquanto a Mimi nos conduzia, chorosa, ela também,
e ali me deixaram ficar dias a fio. Os de minha casa revezavam-se nas visitas e
eu a todos implorava que me levassem dali, mas em vão! Por vezes, acompanhavam-me
num pequeno passeio pelas imediações da clínica, que me enchia de esperança,
mas acabavam por me conduzir, de novo, ao ponto de partida. Cheguei a perder a
esperança de um regresso a casa. Foram dias intermináveis, de solidão,
impotência e dor!
Quando
finalmente deixei a clínica, levei comigo um conjunto de ferros no interior da
minha perna, uma espécie de chapéu enterrado no cachaço, que me impedia de
lamber a pata acidentada, e a ausência de cauda. Como poderia então manifestar
o contentamento de me sentir, finalmente, em casa?


Sem comentários:
Enviar um comentário