Viveste a última década como se dissesses, a cada dia, “Obrigada por
me terem ido buscar ao canil”. Mas sou eu quem hoje diz “Obrigada, obrigada por
nos teres dado tanto, por nos teres dado sempre para além daquilo que podias”.
Não sei porque te escolhemos, ali, no meio de tantos. Não podíamos trazer todos! E foi em ti que nos fixamos, as duas, eu e a minha filha, como se
tivesse havido entre nós um acordo tácito. Talvez a tua beleza triste nos
tivesse inquietado, talvez a tua fuga para o fundo da jaula, o medo escondido
num gesto de fingida ferocidade nos tivesse convencido...
Não sabia a tua idade, disse-a o veterinário, 1 a 2 anos, talvez.
Não importava! Chamamos-te Kika. Mesmo que nos dissessem que que no passado te
chamaram Chiquita! Queríamos que esquecesses esse nome, que esquecesses quem to
deu e foi capaz de te deixar para trás. Nós levar-te-íamos para o futuro! Para
onde quer que fossemos! E tu prometeste, nos primeiros gestos de cauda, que nos
seguirias para sempre!
Criaste uma hierarquia que ninguém te ensinou... primeiro a minha
mãe, depois eu, depois a minha filha, depois todos os outros, mas cabíamos
inteiros no teu amor. Escolheste ser sombra nossa, até ao fim, mas foste sol!
Os dias continuam quentes, como se tivessem esquecido que o verão
terminou, como se ignorassem o frio que se abeirou de ti e de nós e não
soubessem da chuva que enche os nossos olhos tristes. Os teus amigos perpetuam
os rituais de sempre, procuraram as mesmas frescas, passeiam nas horas mornas,
soltam os mesmos latidos agitados ou contentes... só o jardim parece maior e
mais vazio. Também a casa, a nossa casa, está mais só, falta a Kika, tão
serena, tão discreta, a seguir os nossos passos, no seu jeito lento de quem tem
todo o tempo do mundo para amar.
Soni Esteves, setembro de 2018

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