Há dias, a pretexto de umas arrumações, dei comigo a olhar um
velho prato que tenho guardado e ficar ali, a ver, através dele, pedaços da
minha infância.
O prato não tem qualquer valia senão aquela que carrega a
minha memória, por isso, um dia, ninguém o guardará mais, porque não há valor
senão aquele que o nosso coração conhece.
Foi num domingo, certamente, pois era aos domingos que a
comida se servia melhorada e que, por vezes, havia um qualquer docito. E era
nesses dias que, por vezes, eu surripiava um ou dois, uma ou duas fatias de
bolo, ou um pratito de presigo, e lá ia, prato na mão, por uma zona baixa do
muro que separava os dois eidos, o nosso e o do Serantone e da Serrosa.
Eis-me, então, na casa deles, com a minha mãe a fingir-se distraída.
Quando eu chegava com aqueles pequenos segredos, eles riam de
um modo que me fazia rir também. Brilhavam-lhes os olhos muito pequeninos, nos
rostos vestidos de pregas muito fundas em volta da boca, de onde os dentes há
muito haviam desistido.
É preciso que se diga que a minha dádiva não era
completamente desinteressada... o Serantone
era a minha biblioteca interminável! Só ele conhecia as mais belas e terríveis
histórias e estava sempre pronto a satisfazer a minha insaciável curiosidade.
Como ia dizendo, foi seguramente num domingo que eu, mais uma
vez, atravessei o muro na zona costumada e me preparava para mais uma festa de
sorrisos e muitas histórias. Direi que a tarde era de sol, lembro-me deles
sentados na soleira de pedra, de porta escancarada. Levava na mão o prato, com
o quê não sei, já não me lembro. Só recordo de o sentir a voar-me da mão. Por
sorte não caiu na escada de pedra, mas ao lado, numa pequena zona de terra que
amparou a queda, evitando que se desfizesse em mil pedaços. A meio, o prato
ficou partido a meio! Também não recordo se ficou a salvo o que ele carregava,
talvez não. No meio da minha atrapalhação e da aflição dos dois velhotes só me
lembro de dizer que não fazia mal, tínhamos outros...
Dias depois, o Serantone apareceu à minha porta. O brilho dos
seus olhos iluminava-o, enquanto a sua mão estendia o prato... inteiro.
- Está novo! – dizia, exibindo a sua obra de arte.
A minha mãe, que seguramente já tinha percebido a falta do
prato, e até talvez tivesse adivinhado o destino, não deu mostras de
desconhecimento.
- Que maravilha, Serantone! Como fez isto?
- São gatos! Três gatos de arame e ficou como novo! Por aqui
é que ele não torna a partir!
A minha mãe arrumou o prato, por pouco o deitava fora,
mas acabou por guardá-lo no fundo do armário. E por ali ficou, até eu o ter
resgatado, como tesouro meu.
Soni Esteves, maio de 2019

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