quinta-feira, 29 de setembro de 2022

Ó MEU S. JOÃO


Crónica publicada in Bird Magazine, junho 2022

Diz a minha mãe que o S. João foi o primeiro santo que me abençoou, porque logo que saí da clínica Dr. João Barbosa (antiga clínica na Rua do Raio, em Braga), desci, em carro de praça, a Avenida Marechal Gomes da Costa, até à capelinha de S. João da Ponte. Teria eu três ou quatro dias, pois nasci no dia 20 de junho. E, fosse promessa, ou decisão simples de quem gosta do santo ou da festa, tenho a lembrança de, ano após ano, aguardar com impaciência a descida da mesma avenida até à ponte sobre o rio Este, onde a figura de S. João, o Batista, fazia jus ao nome e exibia uma concha sobre a cabeça de Jesus. Para mim, graças àquelas esculturas de barro, aquele era o rio Jordão.

Lembro que fazia a descida da avenida a apreciar as barraquinhas de brinquedos que a ladeavam, até descobrir aqueles que a minha mãe me haveria de comprar. Geralmente, eram pequenas peças de barro, pratos, chávenas e malgas, que eu usava para dar de comer às bonecas, e que, dada a fragilidade, tinham de ser substituídas a cada ano. Também me lembro de ter tido alguns brinquedos de lata, como por exemplo, uma máquina de costura quase igual à das modistas e alguns tachos que quase pareciam igualar-se aos verdadeiros, não fosse o tamanho. Eram assim os brinquedos das meninas, coisas para nos ensinarem a sermos umas mulherzinhas e boas donas de casa.

Entretanto, a avenida que nos leva à velha ponte ganhou nome de Liberdade, e também a minha festa ganhou formas mais livres e passou a fazer-se tanto de dia como de noite. Na altura, não eram bandas nem cantores da moda que nos chamavam à festa, era antes a possibilidade de um ou dois dias de folia e uma noite de independência. O S. João surgia envolto em manhãs frescas e orvalhadas que faziam carregar o verde dos manjericos e traziam a promessa de algo por vir. Então, surgia a grande noite e, ora a subir, ora a descer, percorríamos a avenida da Liberdade, em grande filas, de mãos dadas, não fosse desfazer-se o grupo no meio da confusão de cabeças, permanentemente fustigadas pelos martelinhos de plástico colorido, ou pelo alho porro, bem mais suave, embora de cheiro duvidoso. 

Havia, por essa altura, muitas histórias e superstições que prometiam resolver paixões ou deslindar futuros... Certa ocasião, eu e duas amigas demos corpo a uma dessas crendices. Tratava-se de abrir um ovo dentro de um copo, na noite de S. João, e deixá-lo ao ar livre até de manhã.  Estávamos expectantes quanto ao desenho que ali se formaria, dado que este seria revelador de algum aspeto importante do nosso futuro. Na manhã seguinte, creio que depois de uma direta, lá fomos espreitar os ovos e, curiosamente, todos tinham desenhos diferentes, que cada uma interpretou como bem entendeu. Não recordo os outros, mas o meu tinha o traçado nítido — pelo menos assim me pareceu — de um barco, o que decidi ser o sinal de que faria grandes viagens e o meu destino cumprir-se-ia, talvez, longínquo. 

Hoje, a festa faz-se talvez com mais gente, porque se estende por mais dias e os turistas descobriram Braga e os seus encantos. E talvez haja um programa maior, mais rico e mais preenchido. Não tenho a certeza de que seja melhor, cada tempo seu encanto, mas é com certeza diferente. As barraquinhas ao longo da avenida já não vendem brinquedos de barro, quem os compraria... agora há roupas, óculos e carteiras de marcas sonantes e origens duvidosas. É preciso acompanhar os tempos, mas gosto que a tradição se mantenha, apesar das inovações.  Continuo a gostar de passear pela cidade e apreciar os gigantones, os bombos, as bandas de música e as concertinas, gosto de assistir ao Auto dos Pastores e à Dança do Rei David, gosto de comprar o manjerico para a minha cozinha e gosto de comer as sardinhas e o caldo verde. Mas gosto, sobretudo, de perceber a alegria que a minha mãe, apesar dos seus noventa e quatro anos, continua a manifestar com a aproximação dessa data, uma alegria que parece ir buscar aos tempos da sua juventude, talvez muito antes de ter descido comigo, pela primeira vez, a avenida que leva à capela de S. João.



Sem comentários:

Enviar um comentário