domingo, 13 de novembro de 2022

A voz do Mar

Crónica publicada na revista Bird Magazine, agosto de 2021

    Não me lembrava da voz do mar. Não me lembrava de que é preciso estar a sós com ele na imensidão da noite, para ele falar connosco e nos mostrar a sua verdadeira voz. Ouvi-a, pela primeira vez há muitos anos, era a minha filha pequenina e tínhamos ido passar uns dias na casa de férias de uma amiga. Era uma construção de madeira, que ficava, literalmente, na praia, em Moledo.  Foi há tantos anos que Moledo era ainda um lugar desconhecido e alheio a modas. 
    Na primeira noite naquela casa sobre as dunas, ouvi a voz do mar e percebi que aquele som, aparentemente monótono, é espantosamente musical. Lento, quase arrastado, triste, nostálgico, quente e suave, doce, inquieto, apressado, enérgico, excessivo... é capaz de assumir todos os tons nas histórias que nos conta. E eu gostava de adormecer com aquela voz a entrar em mim e a desenterrar as minhas próprias histórias como se lhas contasse, também. Depois vinha a madrugada e trazia consigo o grito das gaivotas, as vozes dos pescadores, sargaceiros, padeiros, um ou outro madrugador, o comboio...  Era a manhã a acontecer e a deixar apenas aquele som de água a bater em qualquer coisa, ao longe. O mar, entretanto, tinha-se distanciado, para nos oferecer um espetáculo matinal. E então passeávamos sobre aquele jardim de rochedos, onde ele tinha deixado lagos azuis, verdes e encarnados, cheios de vida. Havia búzios, caracóis, lapas, mexilhões, ouriços, estrelas e caranguejos a esgueira-se à nossa passagem que julgávamos silenciosa. Guardo essas imagens, tão nítidas como aquela água que refletia o azul do céu. 
    Só não me lembrava da voz do mar. E agora, tantos verões passados, ouvi-a de novo na Praia do Amanhã. Adormeci numa casa sobre a escarpa, com o mar logo ali. A sua voz estendeu-se na noite como um leito onde apetece aquietar e depois envolveu-me até o curso das coisas parecer abrandar, e os pensamentos, liquefeitos, serem salpicos, ecos do mar que trago dentro de mim. Foi aí que tive absoluta consciência de que não me lembrava dos cambiantes que pode ter a voz do mar e que ela me faz bem.
    E então aconteceu-me ficar triste. Não me lembro de ter confidenciado ao mar a tristeza que descobri dentro de mim, mas talvez o tivesse feito, porque ele, nessa noite calou-se, quase. Como se quisesse apenas que eu adormecesse tranquila na minha dor. Perder uma amiga é perder um bocadinho de vida, coisas que ela leva consigo, sonhos quase à beira de serem cumpridos. E é também o roubo de um tempo que jamais me deixará retribuir um pouco do que me deu. Tudo isso eu devo ter confidenciado ao mar, porque me pareceu que chorou comigo nessa noite, baixinho e sem mostrar revolta, para que eu esquecesse a minha.
    A minha amiga partiu. Acordei de noite e a voz do mar estava quase apagada. Sabia que tinha sonhado com a minha amiga. Acordei com o sonho, e a Paula ainda não tinha ido embora. Mas depois o sonho apagou-se como a voz do mar e, de manhã, restava do sonho apenas a imagem dela, igual à das fotografias que guardo desde há muitos anos. 
    A minha amiga partiu, e o universo não parece ter alterado o seu curso, no entanto, um frio novo parece ter trazido num pouco de inverno a esta paisagem. A Praia do Amanhã, que tem nome de futuro, nome de coisa por cumprir, tem agora a luz toldada de uma alma triste. Talvez o céu volte a clarear e o sol traga de novo o verão, e então talvez o mar se liberte deste tom enrouquecido e me volte a falar de esperança e vida.

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