Há dias, ouvi os meus humanos falarem de um tema que,
inicialmente, pensei dizer-me respeito. Diziam que cada pessoa, se a
imaginarmos dividida ao meio, não tem as duas metades, simetricamente, iguais.
E, como se tal imperfeição não bastasse, tem uma metade mais perfeita do que a
outra.
Imediatamente pensei no meu caso e nas duas metades de mim, onde,
de facto, as diferenças são evidentes. Mas nem sempre assim foi…
Nasci perfeito. Quando era pequenino tinha dentes maravilhosos,
afiadinhos e todos dentro da boca. E dois olhos lindos, lindos!
Depois, os dentes cresceram e dois deles deixaram de caber dentro
da minha boca, um de cada lado e um mais saído do que o outro. Terá começado aí
o desequilíbrio na minha lindeza!
Já essa anomalia se manifestara, quando, um dia, uma dor
lancinante atravessou toda a minha cabeça, e um peso avassalador se apoderou do
meu olho esquerdo, tanto que, por instantes, o mundo desapareceu dos meus olhos
e ficamos sozinhos, eu e a minha dor.
Nesse dia e nos seguintes, os episódios repetiam-se, cada vez mais
frequentemente. Os meus humanos foram-se apercebendo do isolamento que
procurava, da falta de apetite que me impedia de responder ao apelo do bife
mais suculento, e estranhavam a minha apatia perante os convites para a
brincadeira.
Entretanto, perceberam o meu olhar baço e lacrimejante, e o
veterinário foi a minha paragem seguinte. E não foi um, foram vários os que me
examinaram, tal como foram vários os exames realizados.
O veredicto foi terrível! Tinha glaucoma… a cegueira parecia
inevitável. Foram duas as intervenções: uma a tentar salvar-me o olho, outra
para mo retirar. Estava cego do olho esquerdo! Agora, havia que cuidar do único
que me restava.
Passei, então, a adotar uma nova rotina. Eu gosto! Diariamente,
após o meu passeio matinal, quando regressamos a casa, a mãe diz “vamos por a
gotinha”. Eu acerco-me dela, ponho-me a jeito, e deixo que um líquido fresco e
leitoso repouse no meu único olho, que ofereço, muito aberto. Depois, fecho-o e
deixo que o líquido se espalhe e acalme a pressão acumulada.
E foi ponderado tudo isto que pensei: terei também um lado
perfeito?
Mas quando ouço os meus humanos chamarem-me “cão lindo”,
“Quiquinho lindo”… percebo que o meu lado perfeito não é o esquerdo nem o direito,
o meu lado perfeito está no olhar de quem gosta de mim.
O outro faz sempre a diferença. Lindo texto!
ResponderEliminarMaravilhoso <3
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