Corre lento, o Lima, na planura
do vale, e eu invejo-lhe o sereno divagar. Calco as margens em contracorrente,
como faço às vezes com a vida, e apetece-me o abraço deste rio que parece
dormir na lentidão espraiada dos campos, para logo escapar em sobressaltos
breves por impercetíveis declives.
E é muita a água que hoje corre, verde
claro, escuro, muito escuro, e azul, como o céu que nela se revê. E há sombras
frescas, margens deslumbrantes de vida e cor, flores, muitas flores, e delas não
sei mais que o cheiro doce que inebria! De branco, só o rumor... dos pássaros, da
água serena a deslizar por entre cercaduras lodosas... do coaxar das rãs, um
cuco ao longe que traz à memória a cantiga da minha infância: ó cuco
ramalheiro, quantos anos, me dás de solteiro? E ele a dizer “cu-cu cu-cu...” e
eu a contar... às vezes muito... e o meu casamento tão longe...
E tudo é tão grande! Tão
poderoso! E sinto que só a Natureza pode ser assim tão excessiva sem perder
encanto.
Há lugares que o homem rasgou, há
sangue e suor nas pedras que pisamos, vestígios de dor e amor entre muros
erguidos, como nos socalcos do Sistelo. E quando os nossos pés tocam a calçada
de pedra que o tempo guardou, podemos sentir que vozes do passado se soltam do empedrado
gasto por rodas de ferro. E um rasgo de memória traz até nós o ranger sofrido dos
rodados sobre as pedras marcadas até hoje, marcadas para sempre, como esta
paisagem, e como o coração da gente que subia à branda. E não sei, quando olho estes
socalcos, o que é do Homem e o que é de Deus, se de Deus for o que a Natureza dá.
Soni Esteves, abril 2018


Sem comentários:
Enviar um comentário