Podes ter entrado no bairro numa noite escura, Corredor, mas foste
estrela brilhante no bairro que te acolheu e foste amor na casa que soube
receber-te.
Involuntariamente, o meu olhar percorre os
espaços por onde tens passado os teus últimos anos. E foram muitos, quase
vinte... mas foram poucos para quem te conhece e ama. Só se acredita mesmo que
o tempo voou quando percebemos que há muito deixaste de desafiar os automóveis para
as corridas que escolhias fazer. Acreditamos quando reparamos que já há muito não
acompanhas o carteiro no seu percurso diário pelas ruas vizinhas. Lembro como,
nos últimos tempos, me comovia quando tu, Corredor, já em passo lento e respiração
ofegante, tentavas fazê-lo, apesar da dificuldade, como se fosse imperativo
esse acompanhamento, como se necessitasses de proteger aquele homem da
gabarolice de todos os outros companheiros teus que ladravam, absurdamente, à
sua passagem.
Tu és dos últimos cães da velha guarda de “Os cães da minha rua”, mas
nada do que disse sobre ti, no livro, te faz justiça. Não saberia, nunca, dizer
tudo quanto representas na vida dos escolheram ser família tua, explicar um
amor que se fez de entendimento e respeito pela liberdade que tu tanto prezas. Aceitaram
que vivesses livre, sem trelas, sem coleiras. Deste e recebeste na medida que quiseste,
e eu diria que foi na medida certa, na medida exata.
Hoje essa família, a tua família, chora. Chora porque a sombra que
escurece o teu pulmão se estendeu muito para além dele e ensombra agora os seus
corações. Chora porque o “Vitelinha”, o “Velhinho”, o “Pintas” enche a casa, a
rua, o parque e o bairro com a sua presença, e a sua ausência dói. Por isso eu percebo que seja tão difícil deixar-te
partir.
Mas o teu corpo, como um barco que fez muitas viagens e ultrapassou
tempestades, está gasto e cansado, e clama pela última corrida. Não há mais
medicina para ti, amigo, não há milagres embrulhados em pastilhas, carinhos, ou
lágrimas que apaguem a sombra que se estende, indiscreta, no teu corpo. Sabemos
que ela vai, também, escurecer os nossos dias, teimosamente, mas não devemos pedir-te
que adies a última corrida. Devemos-te essa caminhada de luz, ao encontro
da paz e da tua liberdade.
Deixemos partir o Corredor!
Soni Esteves, março de 2019

<3
ResponderEliminarO coração dói mas há um sorriso com lágrimas das boas memórias que ficam e não se esquecem.
ResponderEliminarCorredor, agora és uma estrelinha a cuidar dos teus amiguinhos.