quinta-feira, 9 de setembro de 2021

Sons da Água e Paradinha





Há paisagens inteiras que guardo na memória, recantos precisos, carregados de cor ou de mistério, que revejo, mesmo que jamais os possa repetir. Há cheiros que vou buscar longe, muito longe, e me visitam a espaços. Há sons que trago na memória, como se fossem versos inteiros, ou músicas já despidas de letra e de sentido. Assim ficou comigo Paradinha, como se fosse uma voz próxima, que o tempo não pode desfazer, como fez ali com as paredes carcomidas de algumas casas até que fossem poeiras levadas pelo vento. 

Paradinha é uma aldeia bastante próxima da vila de Arouca, mas faz parte do interior mais esquecido, as distâncias não se medem em quilómetros, como sabemos. Seria até romântica essa ideia de provincialismo, de paragem no tempo, como se a idade média tivesse feito morada naquelas paragens quase até ao final do século vinte. Paradinha não tinha uma estrada a servi-la, antes um estradão que, qual caminho de servidão, não levava a mais lado nenhum.  Por certo, esse trilho pouco importaria a muita gente dali, muitos não se terão nunca aventurado por ele, outros traçariam atalhos no monte para aldeias vizinhas, para Arouca, ou para qualquer lugar onde pudessem trocar alguns haveres por aquilo que não produziam, como a roupa que vestiam, apenas duas mudas, na maior parte dos casos. Dizem que em aldeias pequenas como aquela não havia escola, nem igreja, mas todos os dias se rezava o terço e os mais velhos não descuravam o ensino das boas maneiras e das orações que alimentavam as suas almas, naquela humildade simples.  Quanto à escola, a pequenada que queria “aprender”, tinha de ir “servir” para uma aldeia maior, onde a houvesse, e ali ficava a troco de comida e tempo para dedicar ao estudo das letras e das contas. Paradinha foi habitada até algures nos anos oitenta, quando ainda se vivia assim, quase alheio às alterações que grassavam no resto do país. 

A aldeia foi, pois, abandonada, como outras que os caminheiros que hoje rasgam as serras da Freita, S. Macário e Arada, podem sobressaltar à sua passagem. Mas em Paradinha esse abandono teria um fim.  As suas casas, agora restauradas após uma longa deserção, são de uma beleza e simplicidade tocantes, mostrando que aquela recuperação foi marcada pelo amor, pelo bom gosto e pelo respeito àquelas gentes que lá terão habitado. Ali, nada nos choca, mas tudo nos surpreende. Entrei na aldeia, pela primeira vez, em plena primavera, num dia em que o sol e a chuva disputavam permanências na paisagem. Tudo estava fresco e luminoso, apesar de algumas nuvens que resistiam num céu, quase todo azul. Os meus sentidos estavam absolutamente despertos. Na orla dos caminhos e nos montes envolventes cresciam flores brancas, amarelas, azuis, lilases, tudo por entre verdes nunca vistos, e no ar pairavam cheiros secos e doces, onde sobressaiam a estevinha e a rosa selvagem. E havia um som omnipresente, que era o som da água. E tinha tanta força essa sonoridade que adivinhávamos a sua presença muito antes de a surpreender no pequeno ribeiro que corria junto às casas, para a levar ao Paiva que corria ao fundo da aldeia.  Quanta roupa não terão ali lavado as mulheres de Paradinha, quantas brincadeiras, quantos sobressaltos não terá causado aquele rio, quanto encantamento, quantas vezes cenário de doces e secretos amores. 

O propósito que ali me levava era a escrita de um conto que me permitisse participar no concurso literário Sons da Água, e no primeiro passeio que fiz por aquelas ruas, soube logo que estava no sítio perfeito para a criação. E, por certo, não fui a única a senti-lo, a julgar pelas obras de arte que se juntavam àquelas que a própria natureza cria e ostenta. Nas paredes, em lajes dispostas pelos caminhos desenhados pelo xisto, no xisto de que se revestem as paredes das casas, estão dispostas pinturas “acrílico sobre xisto”, como se fossem telas numa qualquer parede de galeria. As mais evidentes, criação do pintor José Emídio, em 2017, são oito, as designadas Ninfas do Paiva. As cores predominantes são o amarelo, azul e verde, tal como se nelas inscrevesse o amarelo do trigo maduro e dos malmequeres que salpicam os montes, mas também o azul do céu e o verde da folhagem, as cores que mais refletem e mudam o aspeto do rio que corre naquela paisagem bela, serena e selvagem. Também há esculturas, muitas, todas ali concebidas, de madeira, ou de xisto, ou da conjugação de ambos. Não sabia que o xisto podia ter tanta cor, que pudesse ir do rosa ao negro, do amarelo ao castanho, uma paleta maravilhosa. Uma das esculturas, “diálogo entre o rio e o xisto”, de João Carqueijero, influenciou uma das passagens resolutivas da busca que no meu conto se empreendia. Passei três dias por aquelas paragens e trouxe comigo a história toda, mesmo que só a tivesse finalizado já em casa.

Voltei a Paradinha no verão. A aldeia estava cheia de gente, turistas que tinham escolhido o local para férias, mas também aqueles que vinham participar na cerimónia de entrega do prémio Sons da Água. Eu fui recebê-lo. 



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